Don Letts é uma das figuras fundamentais para se entender a música e a cultura pop nos últimos 40 anos.
O inglês de família jamaicana começou atuando nos 70’s como DJ no lendário Roxy londrino, onde marcou presença na cena punk britânica, congregando tribos e etnias nas baladas punks com trilha sonora reggeira.
Na sequência, se interessou pela linguagem do vídeo, se destacando em documentários como o seminal Punk Rock Movie (1978), Dancehall Queen sobre a cena da Jamaica nos 90’s (1997), The Clash: Westway to the World (2000 – vencedor do Grammy), The Revolution Will Not Be Televised sobre o grande Gil Scott-Heron (2005), Brother From Another Planet sobre o jazzista e ativista negro Sun Ra (2005), a cultura mod dos 70’s em The Making of All Mod Cons sobre a banda The Jam (2006), o mundo do Funk setentista em Tales of Dr. Funkenstein que retrata George Clinton (2006), o pop dos 00’s com Rock It To Rio: Franz Ferdinand (2006), além de Soul Britannia (2007), Strummerville (2010), Rock ‘N’ Roll Exposed: The Photography of Bob Gruen (2010), The Story of Skinhead (2016) e o mais recente e biográfico Two Sevens Clash – Dread Meets Punk Rockers (2017).
Dirigiu clipes de muito destaque para artistas como Musical Youth, The Clash, Sun Ra, Gil Scott-Heron, Bob Marley and The Wailers, The Jam, George Clinton, Psychedelic Furs, Pretenders, Elvis Costello, Eddy Grant, Black Grape, Gap Band e muitos outros.
Nos 80’s liderou a banda Big Audio Dynamite – (B.A.D.) em parceria com Mick Jones, ex The Clash, quando veio ao Brasil para alguns shows no Rio e São Paulo, atualmente também é radialista na BBC 6 e continua super atuante na cena como agitador cultural sempre bem antenado.
Após alguns contatos telefônicos, Don Letts nos recebeu em sua casa em Londres no final de Jun-2017, concedendo essa exclusiva entrevista para os leitores do Vi Shows.
Vi Shows: Você esteve em São Paulo (com o B.A.D.), numa época em que ainda não tínhamos propriamente uma democracia no Brasil, tivemos a primeira eleição direta para presidente em 1989. Na época vocês, promoveram o single Sambadrome localmente…
Don Letts: Ah, sim eu me lembro, no jornal local apareceu uma foto do “chefe de polícia local” com nosso disco, e ele estava jogando o disco na privada, eu tenho essa foto, vou te enviar depois. (e mandou mesmo !!)
Observação: A foto ao lado é do Radialista AFANASIO JAZADJI, citado na canção em ótimo sampler de Don Letts.
Vi Shows: Como a música entrou na sua vida? Qual sua primeira memória relacionada à música?
Don Letts: Ah, isso é fácil. Na minha cultura, na cultura jamaicana das Índias Ocidentais, é como no Brasil. A música não é algo direcionado para as crianças escutarem. No Ocidente, existe música apenas para crianças, mas, em nossa cultura, ela está em toda parte. É uma parte inerente do que fazemos.
As crianças ouvem, os pais ouvem, os avós ouvem. Então, é realmente tudo à nossa volta, porque é uma parte importante do nosso idioma. Não se trata apenas de música para dançar.
Vi Shows: Você dirigiu clássicos vídeos para muitas bandas como The Clash, Musical Youth, Pretenders, B.A.D. e outros. Você acredita que o formato dos vídeo clipes envelheceu nesse novo milênio apesar da grande presença do elemento visual em nosso dia a dia ?
Don Letts: Oh, cara. Às vezes eu acho que os videoclipes foram o pior que já aconteceu com a música, porque me lembro de uma época em que, se você fosse feio e não pudesse dançar, você estava fodido. Você sabe o que eu quero dizer?
É um meio interessante, mas como a era digital, acho que é um passo de frente e dois passos atrás, porque, obviamente, é uma ferramenta útil. E, nas mãos da banda certa e dos cineastas certos, você pode fazer muito com isso.
Quero dizer, trabalhando com The Clash, por exemplo. Não se tratava apenas de vender discos. Você podia colocar suas ideias pra fora. Eu acho que isso é muito mais difícil nos dias de hoje. Agora, as gravadoras, apenas querem vender produtos. Eles não querem mudar sua mente. Eles querem mudar seus tênis.
Há tantas coisas acontecendo agora que … sim há muita merda, mas se você consegue encontrar o seu caminho através de toda a merda… Joe Strummer disse: “Certifique-se de que seu detector de porcarias esteja bem sintonizado”.
E, se você fizer isso, sempre vai achar pessoas fazendo coisas interessantes em todas as mídias. Infelizmente, há mais pessoas fazendo merda, mas isso não é culpa da tecnologia. É culpa das pessoas. A tecnologia é boa. As pessoas são uma merda.
Vi Shows: Eu abri espaço para nossos leitores fazerem perguntas e a maioria deles me faz a mesma questão. Eles perguntam sobre o video clip de Rock the Casbah. Há muito humor no vídeo, com a relação entre um árabe e um judeu indo para um concerto do Clash, e se tornou um clássico. Você acredita que, hoje em dia, um vídeo como esse geraria mais controvérsias, com tantos problemas e intolerância no mundo?
Don Letts: Como eu disse antes, o negócio de discos não está lá para promover a política ou educar as pessoas. Eles estão tentando vender um produto.
Então, os vídeos que têm algum tipo de visão ou declaração política são, obviamente, desfavorecidos.
Mas, felizmente, há tantos canais de venda diferentes agora que as pessoas podem obter esses tipos de vídeos por aí. Você entende o que eu estou dizendo?
Algo como, eu não sei, o Prophets of Rage, por exemplo. Eles podem divulgar suas mensagens porque não dependem da MTV.
Eles não precisam confiar mais em formato de “single”. Sim, é difícil conseguir coisas tendo uma opinião. Mas é mais difícil encontrar pessoas que tenham uma opinião em primeiro lugar.
Este é o problema no século XXI. Para muitas pessoas, é sobre ego e celebridade.
A música é legal para dançar, mas você não pode passar sua vida na pista de dança. Eventualmente, a música acaba e você tem que lidar com a realidade. E também há música para isso.
Eu acredito na música. Eu ainda acredito na música como uma ferramenta de mudança social é o que estou dizendo. Tem essa possibilidade. Eu ia dizer que apesar dessa possibilidade, muitas pessoas só querem dançar.
Vi Shows: Especialmente em países como o Brasil em que se dança o tempo todo… É uma época maluca, temos tanta tecnologia e as pessoas muitas vezes não fazem jus a tanta informação que temos atualmente, até porque, como você mesmo disse, eles não sabem mais pensar…
Don Letts: Muitas pessoas hoje estão usando a tecnologia para escapar da realidade em vez de usá-la para lidar com a realidade. Na verdade, eles estão usando a tecnologia para substituir suas personalidades. A personalidade agora é quantos gostam de você nas mídias sociais. Ridículo.
Exceto que está em toda parte. Quero dizer, o que aconteceu é que a tecnologia evoluiu mais do que as pessoas.
Os movimentos e instintos diários das pessoas são muito primitivos. É como se ainda estivéssemos em cavernas e nos tivessem dado todos esses brinquedos e estamos ficando loucos, é o que aconteceu.
Mas, escute, essa merda irá funcionar. É como um pêndulo balançando. Agora está indo todo o caminho desta forma, mas acabará por se estabelecer. E as pessoas esperam voltar ao controle do navio e estar dirigindo em vez disso.
Vi Shows: O cinema e a música logo se tornaram importantes na sua forma de expressão. Diga-me: como foi para você descobrir, no meio dos anos 70, a usar essas ferramentas para se expressar?
Don Letts: Penso que, em meados dos anos 70, quando cresci, a música e o cinema eram as únicas duas formas de informação e inspiração alternativas. Então, eles foram tremendamente importantes. E não havia muito disso.
Então, você tinha que ir e encontrar o grupo que você curtia, então você tinha que ir ver o filme que estava interessado.
E acho que isso tornou essas coisas mais valiosas porque você teve que se esforçar. Havia um pouco mais de esforço. E, sim, acho que logo percebi que estes eram meios onde talvez eu pudesse fazer algo. E não conseguiria pensar em um caminho a seguir.
Eu não tocava nenhum instrumento e não estava interessado em me expressar visualmente. Mas, no início dos anos 70, para um jovem negro, essa era uma ideia ridícula.
E, no final dos anos 70, o punk veio com toda a coisa do D.I.Y., faça você mesmo.
E eu me reinventei como cineasta. Mas foi através da inspiração da música e de um par de filmes, particularmente um filme chamado The Harder They Come, o filme mais famoso da Jamaica.
Foi quando eu vi, que eu pensei “sim, talvez eu gostaria de me expressar dessa maneira porque eu gosto da maneira como entretém, inspira e informa”. Conseguir todas essas coisas diferentes.
Vi Shows: Além de filmes como Punk Rock Movie e Westway to the World, você cobriu outros gêneros musicais como o Jazz, a soul music, poesia falada e com muitas outras bandas famosas. O que te move na escolha de temas e projetos?
Don Letts: Jesus, o quê? O que me move? Esta é uma boa pergunta. Eu acho que, quando estou tentando trabalhar com um artista, acho que estou procurando pessoas que tentam expressar o que sinto. Estou me expressando através do trabalho de uma forma muito estranha. Eu acho que isso é definitivamente parte do relacionamento. E também é sobre passar a energia que me fez quem eu sou. Você sabe o que eu quero dizer?
Sim, é como dar a alguém um bom livro. Nada sai do vazio. As coisas que fizeram Don Letts quem ele é hoje, eu li ou ouvi, ou o que quer que seja. “E eu sou um grande crente [de que a gente está no mundo para passar] sua energia, para tornar o mundo um lugar mais interessante, cara.
Você sabe o que eu quero dizer? É como no clube do punk rock. Quando eu liguei meus amigos com Reggae e eles estavam me transformando com toda a coisa punk do DIY.
E desta mistura cultural louca veio a canção Punky Reggae Party. E coisas mais emocionantes aconteceram. Então, sim, trata-se de troca cultural que eu acho.
E tanto quanto eu estou tentando expressar algo, acho que estou tentando aprender … Eu entro com ideias fixas, mas estou sempre aberto a aprender tanto quanto estou tentando ensinar o público ou passar a informação ao público, estou constantemente aprendendo. Você sabe o que eu quero dizer? Então, sim, é o relacionamento simbiótico com o artista onde, sim, eles estão me ajudando a dizer o que eu quero dizer e eles são um pouco, sim, me ensinando merda também.
É um diálogo. É um diálogo com pessoas que me interessam. Isso é o que é.
É difícil. Você está me pedindo para pensar sobre coisas que eu faço instintivamente. Eu não penso nessas coisas, eu apenas as faço. Eu tenho uma ideia e eu corro com a ideia e, depois, outras pessoas separam essas coisas. Mas eu, eu apenas seguimos meus instintos. Eu não penso demais, eu tenho que dizer, e eu não super analiso. Não me prendo à intelectualização.
Vi Shows: Deixar acontecer…
Don Letts: É como rock and roll, cara. O Maldito te acerta ou não. Se eu tiver que pensar duas vezes sobre isso, talvez não seja para mim.
Vi Shows: Quão importante foi o impacto de ver Bob Marley nos anos 70? O que você lembra? E me conte mais sobre as histórias e o relacionamento que vocês tiveram depois de se conhecerem …
Don Letts: Esta história, as pessoas me perguntam muitas, muitas vezes …
E tipo … Ouça, escute, na real, não é como eu e Bob éramos super, ou melhores amigos. Eu conheci o cara por um ano. Bem, eu o conheci alguns anos antes. Mas basicamente, foi um ano, época que ele estava morando em Londres.
Eu o conheci em 1975, e depois ele voltou em 1977 e morava aqui no Chelsea. E durante esse período, eu o vi com bastante frequência porque costumava vender-lhe maconha. Tudo bem [risos]! E quero dizer, eu acho que é …
Vi Shows: Para nós é uma questão importante, até porque no Brasil o Reggae é muito forte atualmente nas periferias…
Don Letts: Agora escute, o Reggae é forte em todo o mundo para as pessoas, porque é a voz do despossuído, cara. Agora, esse é um excelente exemplo de música sendo usada como ferramenta para a mudança social.
É engraçado, no Ocidente, todos são pró Bob Marley como em “One Love”, mas para a maioria das pessoas no mundo, é “Se ligue e se Levante” (Get Up Stand Up). É com isso que nos identificamos.
Durante um ano, eu o vi com muita frequência. Teríamos sido melhores amigos se eu pudesse jogar futebol. Não gosto de futebol, então não joguei futebol. Então eu o via uma ou duas vezes por semana.
Na última vez que falamos, tivemos um desentendimento sobre o punk rock porque eu fui lá usando roupas de punk rock. E ele disse que eu parecia um desses punks. E ele estava lendo o jornal e lá dizia que os punk rockers eram muito negativos, niilistas, que era uma merda, que era um lixo. Eu falei… que Punk não era sobre essas coisas. Tratava-se de capacitação, individualidade, liberdade. De qualquer forma, eu disse a Bob: “Olha, você está errado. Esses caras, eles são meus amigos. Eles são pessoas interessantes.”
E ele tipo: “Não, não. Tire isso daqui”.
De qualquer forma, eu saí fora…. alguns meses depois, acho que ele descobriu o que era o punk e ele escreveu aquela música Punky Reggae Party.
Então fiquei satisfeito por ter sido o primeiro homem a defender esse argumento com Bob… porque eu era jovem então, tinha 19 anos, talvez 18… um bebê que se achava… Porque discordar de Bob era um grande problema. Mas eu tive que discordar. Eu precisei fazer isso.
Vi Shows: Lembro-me de Bob Marley, ele nunca tocou no Brasil, na verdade. Mas ele esteve no Brasil, acredito, em 1979 ou 1980. E para ele o mais importante era jogar futebol no Brasil.
E, então, na televisão, o único que vimos sobre Bob Marley, foi ele jogando futebol com artistas brasileiros. E ele estava muito feliz. Há uma imagem famosa dele com a camisa do Santos futebol clube. E podemos ver por seu sorriso que ele está se divertindo.
Don Letts: Sim. Infelizmente, o futebol não significa merda nenhuma para mim [risos].
Vi Shows: Eu sei. Futebol, é muito importante no Brasil.
Don Letts: Sim. Acredite em mim, eu sei. Aqui também. É.
Vi Shows: Sim. Estou na área de Chelsea nesta semana… futebol no ar ….
Don Letts: Alguns homens gostam de perseguir bolas. Eu gosto de seguir mulheres [risos].
Vi Shows: Eu também prefiro… Falando sobre esse tempo que você diz que não se lembra, essa música “Sambadrome” criou uma conexão forte conosco no Brasil. Como aconteceu e como foi tocar no Brasil naquela época?
Don Letts: Bem, eu vou te dizer o que foi ótimo foi poder ouvir sobre algo que estava acontecendo em um lugar muito distante da sua situação, escrever uma canção sobre isso, e depois ir lá e perceber o quão forte é a conexão que fez com as pessoas. Isso foi um zumbido.
Que fala sobre o poder da música para poder se comunicar e trocar ideias através da música. E esse foi um exemplo perfeito, Sambadrome. Penso que se eu me lembro bem, Mick e eu estivemos ouvindo música brasileira e … aquele filme, qual era o filme?
Vi Shows: Era Pixote? Este filme, Pixote … de Hector Babenco
Don Letts: Sim. Pixote. Eu acho tínhamos visto mesmo …
E então também, ouvimos sobre a situação toda – obviamente com a ligação das drogas e os turistas… Você conhece toda a merda. Está lá na música. E sim. Isso nos inspirou a escrever essa música que, obviamente, fez uma conexão. E claro tenho muito orgulho disso. [Fico] Muito orgulhoso disso mesmo.
No concerto em São Paulo, eu lembro da galera como um jogo de futebol …
Vi Shows : Eu fui, as pessoas estavam como num jogo de futebol gritando gol.
Don Letts : Exatamente, isso que eu ia dizer… Isso mesmo, isso mesmo, eu gostaria de lembrar…
Vi Shows : O narrador falava “Gol do Santos”, “Gol do São Paulo”…. Narrando gols de cada um dos times. Foi muito divertido. Eu estava lá, era um adolescente. Foi incrível.
Don Letts: Eu lembro vagamente, sim. Esse cara era um narrador muito famoso. Ele já morreu, certo?
Vi Shows: Não. Ele teve um desastre, um acidente de carro e tem alguns problemas. Mas ele está se recuperando. Ele não trabalha mais, mas podemos vê-lo em eventos e festas. Ele sempre está presente. O nome dele é Osmar Santos.
Don Letts : Osmar Santos! Respeito !
Respeito. Exatamente.
Vi Shows : O Brasil, hoje em dia, está em um momento político delicado. Atualmente no lugar de um traficante de drogas, você acha que a inspiração seria políticos e toda a corrupção que os rodeia?
Don Letts: Sim. Ouça-me, não é apenas o Brasil, meu amigo [risos]. É [em todos os lugares?],
Mesmo nos chamados países do primeiro mundo, há muita merda … quer dizer, você ouviu falar sobre o incêndio aqui… Você sabe, esse é o resultado da corrupção. Esse é o resultado de pessoas tentando economizar dinheiro em cima dos pobres. Então não é apenas uma coisa brasileira. É uma coisa global, esta … a diferença entre as pessoas que têm e as pessoas que não têm. E está piorando.
Vi Shows: No Brasil, também, talvez o problema seja pior do que aqui …
Don Letts: Sim. O grande problema é que as pessoas estão ganhando dinheiro em cima das pessoas pobres. As pessoas não percebem isso. Na verdade, você ganhar dinheiro com pessoas pobres. É louco.
Vi Shows: O que pergunto é se talvez, essa música, se você fosse escrevê-la hoje, talvez não seria sobre um traficante de drogas. Talvez fosse sobre um político.
Don Letts: Sim. Isso seria muito fácil, no entanto. Os políticos sempre estiveram lá para nós … você sabe.
Vi Shows: Como foi o retorno do original B.A.D. há alguns anos, e se a banda tem mais planos para o futuro?
Don Letts: Eu faria isso de novo amanhã, mas Mick Jones não está interessado. Ele não precisa fazer isso. Mas adorei. Foi ótimo. E foi bom ver o quão fácil foi nos juntarmos. Porque ainda nos vemos, e houve apenas um problema. Mas nós sobrevivemos a isso
Mas, além disso, foi ótimo ver quanto amor havia para a banda. Você esquece um pouco.
Nós não fomos um sucesso massivo global, mas acho que juntamos muitos pontos para muitas pessoas, e acho que também marcamos o caminho multicultural que a música estava passando, misturando todos esses gêneros diferentes.
Vi Shows: Isso é o que eu perguntaria na próxima questão, o B.A.D. tinha um espírito multimídia. Talvez fosse um passo à frente do tempo, juntando visual e música. Hoje, é bastante normal. Você pode ver bandas como Gorillaz fazendo um forte buzz e sendo uma referência. Você viu esse pioneirismo na época?
Don Letts: De modo nenhum. Nós estávamos apenas fazendo o que nos transformou, você sabe? Tratava-se de ter as linhas de baixo jamaicanas, beats de hip hop no estilo de NY e as guitarras rock and roll de Mick Jones.
E porque eu não toco mesmo nada, foi aí que os samplers e os diálogos gravados começaram.
Porque tinha que fazer algo. Então, primeiro, comecei roubando bits de diálogo dos filmes de Sergio Leone e coisas assim.
Mas, eventualmente, tive que justificar meu espaço. E, com a orientação de Mick, eu realmente comecei a escrever as letras com ele, e eu escrevi um terço, ou talvez quase a metade das músicas com ele.
Quero dizer, uma das primeiras letras que eu já escrevi foi E = mc2. E isso foi uma emoção, estar trabalhando com Mick.
Quero dizer, as grandes músicas escritas por esse cara com Joe Strummer, e agora eu era um pequeno aprendiz, aprendendo a escrever com Mick. E estou muito orgulhoso de algumas das músicas que escrevi com ele. Realmente orgulhoso delas.
Vi Shows: Falando sobre Joe Strummer, você ainda está acompanhando a Joe Strummer Foundation? Você sabe como eles estão fazendo atualmente?
Don Letts: Eles ainda estão funcionando. Eles têm Strummerville todos os anos em Glastonbury, e eles ainda estão financiando muitas operações diferentes em todo o mundo. E bandas jovens aqui. Não se trata apenas de ajudar as pessoas daqui também. Como eu disse, eles ajudaram a criar estúdios na África, por exemplo… Eu acho que eles criaram algo na América do Sul. Não tenho certeza. Mas se eles não tiveram, eles provavelmente irão em breve.
Mas está muito no espírito de … novamente, acho que com Joe querendo transmitir essa energia criativa e ajudar as pessoas, você sabe.
Vi Shows: Você acha que se o The Clash ainda estivesse tocando hoje, se Mick Jones e Joe Strummer estivessem juntos e tudo mais, como você acha que a banda estaria hoje em dia?
Don Letts: Não se trataria de tamanho, cara. E sim sobre a qualidade. Eles nunca foram tão grandes quanto o U2, mas isso importa? Eu não acho que eles queriam ser. Nunca foi sobre números. Era sobre a qualidade das pessoas com quem você estava se comunicando, e as possibilidades que surgiram dessa troca criativa.
Isso era muito mais importante. Quero dizer, é por isso que o tipo de Clash implodiu, porque Joe era muito … ele amava as pessoas e ele amava o planeta, você sabe? E ele era uma pessoa muito orgânica.
Ele acreditava no espírito das pessoas. Eu acho que um de seus maiores talentos era fazer com que todos sentissem que tinham um papel a desempenhar, mesmo que às vezes não fizessem nada, mas ele fez as pessoas acreditarem em si mesmas e era uma qualidade muito bonita que ele tinha.
Então, eu não sei sobre números, tudo o que sei é que, sim, existem poucas pessoas que vêm fazer a diferença em todas gerações e, quando elas se aproximam, devem ser valorizadas, até porque, no século XXI, não vejo nenhum Joe Strummer, eu não vejo nenhum Johnny Rotten, eu não vejo nenhum desses tipos de pessoas. Eu nem vejo nenhum Chuck D … bem, Chuck D ainda está vivo – Respeito Chuck D, mas não vejo nenhum equivalente novo dessas pessoas. O tipo de… os guerreiros, cara. Não vejo isso.
E o cara mais malvado do fodido século XXI é Justin Bieber. Quero dizer, o que diabos? Que diabos? Quero dizer, é o que eles chamam de rebelde no século XXI, me dê uma pausa.
Vi Shows: Eu ia te perguntar sobre isso mesmo. Se você acredita que uma nova cena musical ou movimento de artistas pode ter o mesmo impacto que o punk teve na época. Não estamos na época perfeita para algo novo?
Don Letts: Absolutamente, pode ter o mesmo impacto, mas não necessariamente — acho que o Ocidente teve seu tempo. Você sabe o que quero dizer? Mas o mundo é um lugar grande, cara, não é mais sobre a Inglaterra e a América.
E esse é um dos bons lados da tecnologia, democratizou as possibilidades de criatividade. Como eu digo, não é culpa das máquinas que as pessoas realmente estão colocando fotos de seus filhos feios e o que eles estão comendo, não é para isso que é a tecnologia.
Não, mas eu viajo o mundo e você vê que as pessoas ainda acreditam no poder da música para agrupar pessoas, trocar ideias, divulgar informações e ter uma espécie de debate político. Ainda tem essa possibilidade. Não se trata apenas de vender merda. E não se trata de nada, e graças a Deus, não na Inglaterra e nos Estados Unidos.
E eu sei, no Brasil, por exemplo, as pessoas são realmente apaixonadas pela música e pelo poder que tem e pela possibilidade de mudar a vida das pessoas. O seu país é um exemplo perfeito disso. E certamente na África e na Índia e lugares que eu já estive, sim.
Vi Shows: Então talvez o novo estilo de vida… um novo movimento talvez venha de outro país.
Don Letts: Seguramente. Oh, não, a Inglaterra e os EUA já eram agora. Na Inglaterra e nos EUA, todo mundo quer ser uma celebridade. Quando eu entrei na música, quando eu era jovem, entrar na música era uma coisa anti-establishment. Agora, no século 21, muitos jovens, nem todos, mas muitos jovens no ocidente, entram na música para fazer parte do establishment. Você entende?
Eles querem estar no prêmio MTV, eles querem caminhar em um tapete vermelho. Querem ter um canal do YouTube com milhares e milhares de assinantes.
Sim, e se esse é o seu sonho, não sei o quão criativo ou rebelde você pode ser. Eu acho que você tem que dizer: “Foda-se tudo isso”.
Penso que no século 21 o segredo é ter novos valores. Se você não quiser isso, então, de repente, o mundo é um lugar realmente excitante, cara, confie em mim.
Diga: “Sabe, foda-se a MTV, foda-se isso, fodam-se os gráficos. E talvez eu não precise vender para 10 milhões de pessoas, talvez eu possa vender para 1000 pessoas”. Mas a qualidade desse intercâmbio é muito mais valiosa do que a recompensa financeira.
Não me interpretem mal, não há nada de errado em ser pago por uma boa ideia. E, idealmente, você pode fazer algo e ganhar a vida com isso. Mas não se trata apenas de enriquecer, existem diferentes tipos de riqueza. Eu sou rico, não em dinheiro, mas aqui em algum lugar é assim que eu me sinto.
Vi Shows: Isso é legal. Ontem eu estava em um show e fiquei muito surpreso, havia muitos jovens no público e durante o show, as pessoas começaram a cantar, “Oh, Jeremy Corbyn” (líder trabalhista britânico). E as pessoas no bar estão falando sobre o socialismo. Eu achei realmente estranho, não esperava isso. Talvez haja um germe, esta geração, ou talvez a próxima geração, não neste momento exato…
Don Letts: Sim. Eles não querem mais o mesmo. Não, ouça …
É bom que você levantou esse ponto porque é por isso que eu sempre digo: “Não são todos. Não são todos eles.” Mas esta eleição no Reino Unido provou que muitos jovens estão começando a se engajar politicamente. E o motivo por que isso está acontecendo é porque eles estão se fodendo. Eu não sei como dizer… Estou tentando pensar numa forma mais diplomática de dizer isso.
Através da educação por exemplo, eles vão para a universidade e acabam com uma dívida de £ 50,000.
Para alugar um quarto no centro de Londres, um pequeno quarto, é como £ 400, por semana. Como essas pessoas vão ter uma vida e ser criativas se toda a sua energia for gasta somente em sobreviver?
Então, eles foram forçados a se politizar. Mas é lamentável que eles tenham que ser empurrados contra a parede antes de se comprometerem, porque muitas liberdades foram tomadas com as pessoas há muito tempo, mas eles só se envolveram, sempre que algo as afeta diretamente. Mas acho que são seres humanos.
É difícil para eles simpatizar com outra pessoa. Mas quando ele atinge você, diretamente, então você vai para as ruas. Então você começa a votar. E isso é o que mudou as coisas, agora. Então, há esperança.
Sou um otimista, devo dizer. Eu acho que há 17 anos, muitos jovens já estavam dormindo. Eu tenho que dizer isso. O século XXI não me parece muito criativo.
Há muita coisa de nostalgia e gente olhando para trás, porque se você olhar para trás, é muito mais seguro e mais fácil do que tentar ir em frente. Isso leva um pouco de espírito das coisas.
Mas, como eu disse, eu viajo e sou otimista. E acabei de voltar do Brasil vi tantas pessoas lá amando e se relacionando com a música.
Vi Shows: Fiquei surpreso com seu documentário da História dos Skinheads (The Story of Skinhead). Ao assistir e ver que no início o movimento era diferente… foi novidade para mim que sempre o vi como tão violento e racista. E então como você acha que ele se tornou tão radical e violento, afinal?
Don Letts: Os meios de comunicação. Fácil, tão fácil, apenas a mídia. Simplesmente isso, quando um movimento está acontecendo, a mídia não se envolve, a menos que possa demonizá-la.
Há uma expressão, o demônio popular. Eles criam esses demônios populares, e eles sempre divulgam os lados negativos. Então, os skinheads, eram garotos que, sim, gostavam de lutar. E alguns deles começaram a lutar contra pessoas negras porque estavam sendo compelidas.
Vi Shows: Competindo com empregos e…
Don Letts: Bem, o que aconteceu foi que os políticos de direita começaram a se aproveitar da história e foi por isso que a mídia começou a se concentrar.
De repente, é tudo “Oh, esses dois rapazes derrubaram um homem negro”. E, de repente, essa ideia do que o skinhead é se espalhou por todo o país.
E então sobre o mundo todo, com a coisa se amplificando, e foi o que aconteceu… – aconteceu também com o punk rock.
Quando Johnny Rotten… com os Pistols foram na TV, no programa Bill Grundy. E basicamente toda mídia, se concentrou nas polêmicas, nos tipos de moicano e nos alfinetes de segurança. E no momento em que o programa foi televisionado, no dia seguinte, todos pensaram: “Ah, então é isso que o punk tem”.
Virou algo sobre todas essas coisas superficiais sobre as quais a mídia se concentrou. E naquele dia nesse aspecto o tipo punk morreu. E as pessoas inteligentes disseram: “Ok. Nós não queremos nada com isso”.
Mas é interessante que a participação das mídias na criação dessas subculturas tenha sido constante na Inglaterra. Você sabe porque cada vez que eles começam a se concentrar nisso, os jovens dizem: “Tudo bem. Nós não queremos nada com isso. Queremos reclamar isso e torná-lo nosso novamente”.
E é por isso que, na Inglaterra, você teve os Teddy Boys, você teve Skinheads, você teve Mods, você teve Punk, você teve Two Tone, você teve … essa coisa do jovem constantemente tentando recuperar o que eles achavam que era deles.
No século XXI, tudo desapareceu. Você sabe que é engraçado. Essas coisas foram realmente importantes na última metade do século XX. Quero dizer, eu fiz parte de todas essas coisas.
Se eu não participei ativamente, testemunhei ou fui afetado por elas.
Vi Shows: O que você está planejando fazer neste ano e no próximo ano?
Don Letts: Eu, como todos os outros, estou na luta, meu amigo [risos]. É uma confusão glamourosa, mas não é fácil. Estou tentando arrecadar dinheiro para um documentário sobre algo chamado Afrofuturismo. Além disso, ainda tenho meu programa de rádio na BBC6 Music, que eu amo muito. E nos meses de verão eu trabalho muito com DJ.
Mas eu recentemente toquei em Glastonbury e ainda estou me recuperando de Glastonbury. É por isso que estou um pouco corrido.
Fui a São Paulo, cheguei em casa por um dia, e, no dia seguinte, quatro dias em Glastonbury. E é hardcore Glastonbury. Acredite, demora uma semana para se recuperar. É como um jet leg … o jet leg de Glastonbury.
Então, sim, fazendo malabarismos como DJ, o programa de rádio e tentando arrecadar dinheiro para projetos de filmes.
Vi Shows: Eu só quero pedir-lhe para enviar uma mensagem para nós no Brasil, para as pessoas que estão assistindo do nosso lado!
Don Letts: Não cara. Mensagens são para carteiros. Eu não sou um carteiro. Vou dizer o que acabei de dizer.
Basta lembrar que o punk rock não é algo para olhar de volta, é algo que ansiamos. Se você é corajoso e se você tem uma boa ideia, você pode fazer parte dessa coisa que não começou e não terminou em 1977. Tem uma linhagem. Tem uma herança. Tem uma tradição. Foi o que eu percebi naquela época. E foi isso que me fez quem eu sou hoje. Então, funciona, acredite.
Para curtir ainda mais as sonzeiras de Don Letts confiram a playllist – Don Letts Presents Culture Clash Radio
Agradecemos a todos que colaboraram com a postagem : Luis Silva (Edição de Vídeos), Karina Yamamoto (Edição da entrevista) e Willian Henrique (Ilustrações).
https://www.youtube.com/watch?v=4PxnxfNxmXM