Entrevistamos Clemente, figura fundamental do RockBr e um dos responsáveis pelo desenvolvimento do punk e rock alternativos no Brasil. O encontro foi nos estúdios do Showlivre, onde apresenta bandas e artistas novatos através do Youtube para todo o planeta.
Simpático e sem frescuras, Clemente foi direto ao ponto em cada questão, nos ajudando a entender os caminhos da geração 80 no rock brasileiro.
Clemente, como é tocar atualmente em duas bandas tão importantes como Os Inocentes e a Plebe Rude, que apesar de muitas similaridades, também são bem diferentes?
Cara, pra mim, é do caralho porque eu sempre fui fã da Plebe Rude, vi o primeiro show deles em São Paulo quando trabalhava numa casa chamada Napalm, eu recebi eles e a Legião Urbana, que vieram juntos e cada um tocou numa noite, eu curti a Plebe desde o primeiro momento, era uma época ainda underground.
Depois de tanto tempo, fazer parte dessa banda é muito legal, pois são bandas irmãs. Apesar de muita coisa em comum, me dá prazer justamente pelas diferenças, posso atuar de forma distinta em cada uma das bandas.
Às vezes, na Plebe é até mais prazeroso, pois as responsabilidades são diferentes, não preciso me concentrar tanto, a divisão de tarefas é maior e posso enxergar outras coisas que estão rolando.
É divertido e acabo gostando do esquema de dividir as responsabilidades, pois quando tudo fica em cima de você pode ser muitas vezes horrível, e no esquema da Plebe, cada um tem seu espaço. Não ser o frontman, me permite viajar um pouco mais e ter outras percepções.
Como está o planejamento dos Inocentes para 2015, eu vi que a agenda de shows está mais devagar, quais as expectativas?
A gente está devagar de shows por enquanto, mas cada ano é uma história, às vezes tem mais, e outras menos, a banda é das antigas e na real também não se investe tanto tempo assim nela, mas tem muita coisa pra rolar, já que lançamos o álbum Sob Controle (2014) e acabei de conseguir todas liberações para passar o clipe de “As Verdades Doem” na TV, e estou nessa vibe de finalmente ver o som estrear na MTV, mas sem grandes expectativas, quando tem um show legal, a banda vai lá e faz.
Poderíamos fazer mais shows, mas não estou a fim de entrar em roubada, com aquela história de banda punk tocar em lugar tosco, com qualquer som, isso não estou a fim depois de trinta e tantos anos de estrada, merecemos um respeito maior.
Como o rock chegou para você e pra sua turma, numa época antes do movimento punk?
Sempre ouvia rock quando era adolescente na década de 70, não existia muita diferença entre o rock, o pop, não tinham essas divisões de hoje, o rock tocava na rádio e era popular entre os jovens, tinha na Globo o programa Sábado Som à tarde e rolavam várias bandas como Black Sabbath ao vivo em algum festival, Led Zeppelin ao vivo não sei onde… Bad Company… e não eram somente os medalhões, sempre apareciam grupos diferentes, então o rock já fazia parte do meio ambiente.
O que existia era um rock mais pop e um rock mais alternativo, só que sem nenhuma dessas características do que hoje é o rock alternativo. Tinha paixão desde pivete pela origem do estilo nos anos 50, vendo filmes como “O Selvagem” com Marlon Brando e “Juventude Transviada” com James Dean, acho que já queria entrar nesse mundo, desde os 10, 11 anos, queria ser como o Chuck Berry.
Como o surgimento do movimento punk pegou você e os jovens na periferia de São Paulo?
Foi uma identificação mesmo, pois curtíamos a rebeldia e a estética dos anos 50, mas muito do rock dessa época, estava tomado pelo estilo do Rock Progressivo, que fora bandas boas como o Pink Floyd, viviam um auge da diluição com coisas terríveis como Rick Wakeman, com Viagem ao Centro da Terra, Rei Arthur… e começou uma babação, uma diluição da diluição, e muitas bandas tradicionais já haviam perdido o gás, mesmo os Rolling Stones e o Led Zeppelin queriam saber mais de ter um avião próprio, figurinos caríssimos e tal, enquanto a gente queria usar roupa de couro e curtir bandas mais antigas como as bandas dos anos 50 e bandas de garagem como os Stooges e os MC5 quando veio o Punk como algo natural e tangível para cada um de nós.
Bandas excitantes que falavam coisas importantes para a garotada, diversão, política e um lance de poder agir, fazer acontecer, voltando para aquela origem mais rebelde e selvagem do rock, foi como reencontrar o estilo.
E como foi em São Paulo a consolidação do movimento punk, numa cidade que já tinha uma cena roqueira, e que acabou se encontrando com artistas como o Antonio Bivar, eclodindo no Festival do Fim do Mundo no Sesc Pompéia?
Minha primeira banda punk foi o Restos de Nada que começou em 1978, a gente foi descoberto pelo Antônio Bivar só em 1982, então você pode imaginar que foram vários anos tocando por aí na raça, organizando festivais, fanzines e fazendo acontecer sem nenhuma referência na mídia e olha que estávamos em contato com punks do mundo todo, caras da Finlândia, Itália e Estados Unidos, todos trocando sons e agitando a cena que já era global.
Até que o jornalista Luiz Fernando Imediato [atual diretor da Geração Editorial] fez uma matéria no Estadão destruindo os Punks, falando mal do movimento, detonando mesmo os Punks da São Bento, e eu acabei escrevendo uma carta resposta que foi publicada, e que chamou a atenção de muita gente, os caras viram que tinha uma cena pensante, falei da ideologia, o que nós fazíamos, onde íamos e qual era a cena.
E dois, três dias depois já estava lá na loja Punk Rock o Antonio Bivar, que conhecia a cena de Londres e queria conviver de perto os punks de São Paulo, o Antony que era um antropólogo argentino/inglês que dava aula na USP, o pessoal do Olhar Eletrônico com Fernando Meirelles [diretor de cinema] e companhia que estavam começando e registraram a cena em documentário, a galera do AgentS que já estava numa viagem New Wave e queria gravar as bandas punks existentes.
A carta foi um catalisador e mostrou pra todo mundo o que existia, que podia encontrar essa galera nas Grandes Galerias, em especial na Punk Rock Discos, numa época que não tinha email, internet e mesmo assim, era possível fazer as coisas acontecerem.
As pessoas tinham que sair de casa e se encontrar, ir nas galerias do centro, na São Bento e trocar ideias sobre o que era de interesse para a moçada, era a nossa “internet”.
Como foi a apresentação no Gallery, com a revista da casa da alta sociedade publicando seu manifesto punk. Vocês tocaram lá? Foram expulsos?
Fomos expulsos mesmo, foi até legal não ser aceito por tudo aquilo que eles representavam e que nós representávamos como punks. Foi legal (risadas). Mas a gente tocou, foi expulso depois, era uma festa punk no Gallery, depois de tocarmos ainda se apresentaram o Patrício Bisso [jornalista, ator e figurinista argentino] e Kid Vinil [jornalista, DJ e ex-vocalista da banda Magazine], quando acabou ficamos lá enchendo a cara e claro que deu treta, fizemos uma super zona. Estava chegando a comitiva do Presidente Figueiredo e aquele bando de punks não cabia mais lá.
Isso foi em 1982, o Bivar que cometeu essa loucura, ele escrevia para uma revista chamada Gallery Around, que era a revista do Gallery, mas tinha esse lado cabeça, com foco em cultura, e ele fez uma matéria gigante sobre punk e a matéria repercutiu na mídia toda, já que a revista era vista por todo mundo que era antenado, não era uma coluna social gigante e sim uma revista bem sacada com conteúdo de primeira, que acabou apresentando o Punk Rock na mídia.
O evento era uma festa comemorativa do lançamento da revista, e fomos convidados pois a revista falava da New Wave e toda movimentação alternativa e pós punk, e o Kid Vinil participou de um editorial de moda com May East, ele era na época do Magazine e ela da Gang 90, logo a “New Wave” virou etilo musical no mundo, mas no princípio era só o termo usado para definir a nova cena.
A New Wave então representava literalmente essa nova onda com novos artistas e uma nova estética chegando ao Brasil, entre elas o punk, depois é que a New Wave ganhou sua cara como estilo musical por aqui.
Alguns anos depois Os Inocentes já com você nos vocais, gravou seus primeiros discos num esquema profissional numa gravadora major, mas o primeiro trabalho Pânico em SP foi lançado como EP com seis músicas, mas vendido como LP normal, isso já foi um problema na relação da banda com as gravadoras?
O problema é que a gravadora não fez do tamanho de um EP com 10 polegadas, e com os lojistas vendendo no mesmo preço de um LP, acabou dando essa confusão, e coincidentemente tanto Os Inocentes quanto a Plebe Rude estrearam nesse formato, Os Inocentes com 6 músicas e a Plebe com 7.
Nas versões em CD de Pânico em SP existem outras músicas, elas são das mesmas sessões?
Não, elas entraram quando fizemos a edição comemorativa do disco e gravamos mais 6 músicas atuais, até fizemos 2 capas mostrando a banda na época e 30 anos depois.
Os fãs originais reagiram mal a essa fase da banda, com aquela história de perder as origens punk?
Mas também estávamos de saco cheio de fazer show e só dar treta, o movimento acabou se tornando muito autodestrutivo, com o pessoal mais na vontade de brigar e encher a cara do que ouvir música, e o que queríamos era fazer música, então saímos do gueto punk para ir direto para o Pós-Punk que era a sonoridade representada no Pânico em SP, estávamos mesmo em outra pegada e cheios dos problemas que eram os shows e o dia a dia.
E isso de gravar pela Warner só rolou 1986, mas nosso foco já havia mudado, pois desde 1984 a banda tocava num circuito mais pop, com shows no Rose Bom Bom, no Lira Paulistana, buscando atingir outro público, pois a proliferação da violência e das gangues fez que os shows punks tivessem que ter enormes esquemas de segurança.
Nessa época fomos em direção ao Pós-Punk, o RDP para o Metal, o Olho Seco acabou, o Cólera acabou e a gente queria tocar. Fomos tocar com a galera das Mercenárias, Ira!, Violeta de Outono, na busca do nosso caminho.
Você acha que a banda teve o destaque merecido? Porque não teve mais divulgação e a banda não passou para as ligas principais?
Cara, isso é normal, as bandas paulistas talvez sejam de verdade demais, a gente de certa forma não é a diluição de nada, mas nunca teve aquela veia pop mesmo, no sentido popular, pro bem e pro mal, né, somos legais também atualmente por causa disso, os Titãs, por exemplo, conseguiu trazer no seu som essa veia pop para uma sonoridade que a gente fazia.
Conseguiram unir o pop que eles já faziam com um pouco mais de atitude que Os Inocentes tinham de sobra.
Os Inocentes tem um repertório que não envelheceu, já que as canções ainda representam causas fundamentais da sociedade. A Palestina não é ainda um país, a miséria e a fome continuam no mundo, assim como as guerras e o imperialismo. Mas atualmente existem novas correntes de resistência como o cyberativismo, a cultura hacker, Wikileaks, o cyber punk, esses temas te inspiram como artista ou como cidadão?
Na real não (risadas), as coisas não mudam de verdade, somente as ferramentas, e muitas vezes as pessoas se iludem, nos protestos de 2013, a galera falava, agora vai temos a internet para se comunicar, mas eu cheguei para eles e disse que nos anos 70 nos reuníamos também e nos organizávamos sem toda essa parafernália, e mobilizávamos 100 mil caras, o que proporcionalmente era muita gente.
Afinal de quem é a internet ? O sistema sabe hoje o que você pensa, onde foi, com quem, não é nenhuma liberdade, afinal o mundo nunca foi tão controlado. Essa liberdade toda atual é falsa, liberdade era quando estávamos desconectados. O sistema fez a rede para saber de tudo e controlar a todos.
Você tem o privilégio de lidar com bandas novas e artistas de diversos tipo no seu dia a dia. Como vê o cenário atual?
Tem muita coisa legal e como sempre muita coisa ruim, afinal produzir é muito mais barato e viável, entrar num estúdio é algo tangível, antigamente dependia de alguém que bancasse, e produzir uma canção de forma decente nunca foi tão fácil, e no final com uma produção cultural muito maior, aparecer e se diferenciar fica bem mais complicado.
O que falta para esses novos artistas chegarem ao público e ocupar os espaços culturais? Dominar essas ferramentas de comunicação social?
Não, elas são somente ferramentas, sozinhas não fazem nenhuma diferença. O lance é assim, ou você trabalha com um grupo específico, que é sua galera, como, por exemplo, no caso do Super Combo.
Se você monta uma banda hoje, tem que pensar, qual é meu grupo, qual a “minha galera”… É com eles que você vai ter que se relacionar. Pode ser que você faça parte de uma cena ou não, a internet não vai fazer nenhum trabalho sozinha.
A função de blogs e sites como o Vishows é parecido com isso, a banda tem que tocar, fazer parte de uma cena, conhecer as pessoas, se meter, e usar a web para divulgar o trabalho.
Talvez as bandas tenham se esquecido disso, tem que ir pro bar beber, conversar, conhecer uma galera, outros artistas, viver a arte, nem tudo é digital. Tem que saber com quem falar, quem são as pessoas.
Nos anos 90, Os Inocentes tocaram abrindo para os Sex Pistols e para os Ramones, foi especial, rolou algum contato ou recordação?
Sim, foi especial, eram bandas que ouvi desde adolescente e foi muito legal. Toquei com os Ramones, depois dividí palco com Marky Ramone e os Intruders, hoje encontro com o Marky em várias ocasiões.
Com o Sex Pistols foi legal, mas não cruzamos os caras, depois em 2001 abrimos para o Bad Religion, também, foi demais, foram vários shows legais como agora em 2012 com o Attaque 77 da Argentina, que vieram um dia antes só para tocar com Os Inocentes na comemoração do aniversário do Começo do Fim do Mundo no Sesc, como convidados nossos.
Pensaram em se lançar na América Latina ou fazer uma versão em espanhol dos clássicos da banda ?
O novo CD vai sair no Chile e na Argentina, mas não sentimos necessidade de fazer versões como o Paralamas, só se fosse um trabalho mais pop, pois eu curto ouvir o Attaque 77 em espanhol, acho que eles vão curtir de nos ouvir em português.
Em 2006, um monte de gente lembrou de Pânico em SP, como trilha sonora dos ataques do PCC. Você também se lembrou disso?
Na realidade me lembraram disso, mas já havia rolado em 1983 e 1984 quando teve um quebra-quebra e saques em São Paulo, que ninguém mais fala, mas foi quando os militares desistiram, muito mais por causa disso do que pelas Diretas Já!. Ou ia por bem ou ia por mal e os militares deram o fora.
Acho que é uma coisa cíclica, na época dos anos 80 saiu no Notícias Populares, que a profecia punk se realizou e sempre é parecido, uma coisa amorfa violenta e sem liderança, acho que é um germe que está aí, ora adormecido mas que pode reaparecer.
Acredito que é disso que Pânico em SP realmente fala. Mas eu espero que não role de novo, em 2006 saiu de novo no Terra a comparação, mas prefiro ver somente a canção tocando por aí.
Atualmente você vê a banda num esquema mais desencanado… sem grandes pressões por sucesso ou resultado?
Eu tô na ativa, sempre tocando e tal, mas não fico na expectativa de nos chamarem para os Mega Festivais e tal, apesar de achar uma super burrice dos caras, pois colocam bandas sem repertório e história para fazer um show de grande porte.
O tempo só fez bem para nossa carreira, quem vai num show atualmente vê que a banda só ganhou moral com o público e consolidou seu repertório com o tempo.
Mas não adianta reclamar, aqui no “Rock Brasil” é difícil mesmo, se fôssemos americanos ou ingleses, estaríamos nadando de braçada, mas é melhor tocar o dia a dia e se manter na ativa, mantendo as bandas no estúdio e na estrada, fazendo o que sabemos fazer, independente de modismos ou tendências passageiras.