No finalzinho de 2015 agendamos essa histórica conversa com uma das maiores referências do rock e do pós punk nacional , afinal Sandra Coutinho além de liderar a histórica banda As Mercenárias, sempre foi uma das figuras mais autênticas da cena, tocando com músicos diversos na cenário alternativo paulistano, injetando sempre doses de inquietação e inconformismo nos versos e conceito musical de seus projetos.
Atualmente a banda é formada por Sandra Coutinho (baixo e voz), Michelle Abu (bateria e back vocal) e Silvia Tape (guitarras e back vocal), resgatando a sonoridade oitentista original das Mercenárias, quando lançaram os clássicos Cadê as Armas (1986) e Trashland (1988).
Mas a banda não vive do passado, encontramos Sandra após show no Epicentro Cultural quando registraram ao vivo, em intensa apresentação, sons novos que devem ganhar em breve o mercado.
Vocês estão gravando sons novos com essa formação atual das Mercenárias, como aconteceu esse convite e como está essa nova fase da banda ?
O pessoal do selo EAEO nos convidou para tocar e registrar no Epicentro Cultural, daí nos perguntaram também se tínhamos sons novos ainda não registrados, o que foi perfeito pois essa nova formação já estava me dando várias inspirações, e achei que era meio que o momento numa linha evolutiva das Mercenárias, pois estávamos correspondendo com o tipo de sonoridade que eu queria.
E como já tínhamos esses temas, era a hora mais propícia, então nos comprometemos a fazer com foco nas canções novas, e que se saíram foram mais como demo tapes, então são 5 ou 6 temas novos, e que hoje foram devidamente apresentados ainda cheios de frescor, já que quase todas as letras foram finalizadas de ontem para hoje, definindo frases e até mesmo vocais nas últimas horas, o que foi muito legal, pois pude trabalhar com o pique da emoção, garantindo a espontaneidade… mas ainda faltam detalhes nos backing vocais, que vão enriquecer a sonoridade das canções.
Como funciona seu processo de composição, elas surgem mais naturalmente ou exigem mesmo dedicação e trabalho duro ?
Comigo funciona assim… me projeto muito na situação, quer dizer… tenho uma coisa e um desafio em surpreender, já que eu gosto de ser surpreendida, ficar com aquela sensação de “Nossa…o que foi isso…”, pois é justamente “essa coisa” que faz você abrir um espaço novo e quebrar algum padrãozinho seu, porque se não você se acomoda numa história e não vê todas as possibilidades que existem.
Mesmo no começo da banda, a gente era uma configuração de pessoas meio peculiares, meio esquisitinhas, então quando tudo isso se juntou saiu mesmo algo diferente, até porque não tínhamos muitas referências instrumentais.
A Ana (antiga guitarrista) tocava mais violão, quase numa pegada MPB, a Rosália nunca tinha cantado e eu saí do piano para o baixo que era 100% novo. Foi toda uma coisa de se arrumar com o que tínhamos, então as coisas iam se construindo, a Ana tocava algo na guitarra e eu falava, isso não, isso sim e fomos para essa história de buscar uma sonoridade e sair com algum resultado.
Depois com o fim da banda, eu fui para a Alemanha e lá fiquei um tempão, fiz trabalhos solo, composições para performances e peças, então eu tenho muito essa coisa de ver o que acontece na hora mesmo, e depois em cima dessa base eu vou montando.
As vezes por exemplo eu vou praticar o baixo, e pode sair uma frase nova, eu pego aquilo e gravo, e começo um processo de montagem, e eu agora até acredito que a música está lá no universo, parte da minha fase atual em que acho que tudo acontece ao mesmo tempo, presente, futuro e passado.
Comparando com o seu início de carreira, como você acha que a tecnologia interfere atualmente, será que ficou mais fácil se expressar e colocar uma criação no mercado ? Isso tem sido positivo na sua visão ?
O ser humano infelizmente tem dificuldade em equilibar as coisas, ele age como uma criança, parece que não consegue se censurar em algumas coisas, como poder se controlar e não se tornar escravo ou acomodado com uma tecnologia.
Claro que antes era necessário mais conhecimento para chegar em algum lugar, ou você tinha um dom, talento ou muito estudo, não era qualquer um que subia num palco.
Muito antigamente as cantoras e cantores gravavam ao vivo no rádio, não tinha muito espaço para o erro, todos tinham um compromisso e responsabilidade de estar mais prontos.
Atualmente muitas coisas parecem audição de colégio, quando o objetivo é se apresentar para a família e para os amigos, eu acho que do jeito que tudo foi ampliado, abriu mesmo espaço para o Ego se manifestar, e as expressões atuais são mais egóicas do que realmente uma comunicação mais essêncial de compartilhar mais, ou transcender algum tipo de situação, sentimento ou expressão.
Eu sou uma pessoa conectada com a emoção, eu gosto disso, me envolvo emocionalmente com os grandes artistas e cantores, acabo chorando com toda realidade por traz de uma canção, tenho essa dramaticidade, e muitas vezes parece que isso não é mais nobre.
Eu frequento um terreiro, acho super bonito, e fico de verdade emocionada em ver as pessoas que vão lá pedir ajuda e os médiuns atendendo um por um, dando o passe, uma flor, um raminho, e vendo as pessoas se conectando, são situações assim reais que mexem comigo.
E no final acho que tudo atualmente pode ser bem perigoso, aquela coisa do também posso porque sei usar essa maquininha que faz uns sons, e que facilita é claro mas pode ter menos qualidade no geral.
Como foi essa sua transição para assumir os vocais das Mercenárias ?
Foi assim, a Rosália (vocalista original da banda) participou desse nosso retorno, e quando ela resolveu sair de novo, foi mesmo um baque, eu achava que íamos engrenar, e daí pensei que a coisa toda tinha de fato acabado.
Mas apareceram algumas datas e pensei em tentar como um trio, e no começo foi difícil, além de aprender todas as letras, a formação com a Pitchu e a Georgia não ajudava nas vozes, e eu buscava mais força vocal, ou mesmo algum uníssono… mas essa minha concepção não conseguiu ser realizada com elas.
Nessa época eu me achava mesmo sobrecarregada, até por não ter a potência e aspereza que nossa sonoridade exige, então foi em 2014, que pedí para elas escutarem os sons originais e me ajudarem com maior participação, o que acabou não rolando, e quando apareceram novas datas de shows, eu pensei que não seria possível continuar novamente.
Mas foi quando conversei com a Michelle que disse que topava, e apareceu a Silvia que eu conhecia através do Edgard Scandurra, e que na verdade não toca guitarra, manda bem no baixo mas que de tão fã da banda, me convenceu que valia a pena tentar… foi em casa e me mostrou que tinha tirados as guitarras todas, e então confirmei os shows.
Fizemos o primeiro que foi horrível, mas já no segundo começou a dar liga, e voltei mesmo a ser feliz de verdade, após 10 anos tocando sem realmente me satifazer 100%.
O que você está ouvindo atualmente ?
Essa é uma boa pergunta, até porque estou estudando fazendo licenciatura em música num curso à distância, então tenho umas missões de escutar muitas coisas como parte do currículo, e tenho entrado em contato com canto gregoriano, barroco, mas escuto muita coisa também em paralelo, como a rádio FIP (francesa), já que gosto de muita coisa que me surpreenda e eles fazem uma coisa sempre diferente.
Dos meus CDs eu não ouço mais nada, fiquei cansada deles, mas tenho muitos sons variados mesmo. Quando cheguei nos anos 90 na Alemanha, eu não queria ouvir mais rock, e tive muitas oportunidades de ouvir de tudo, escutar sons indianos ou africanos tocados por músicos dessa origem, me ajudando a ter um repertório próprio muito experimental.
E uma coisa puxou a outra e continuo ouvindo sons cubanos, espanhóis, orientais, árabes e turcos, com as danças e culturas locais, que me permitiram fazer experimentos radicais, há quase 25 anos atrás, época em que me aventurei em diversas intervenções sonoras, criando músicas em línguas da fantasia, entrando mesmo numa viagem experimental sem limites.
Essa experiência toda, de ter me apresentado em galerias e vernissages, mexeu comigo e acabo desde então procurando sempre escutar coisas que me instiguem e me causem alguma surpresa.
Escuto de tudo, talvez não ouça Metal, mas sem preconceito. Outro dia conhecí uma banda pesada chilena que achei muito criativa e polirítmica e acho que a música sempre se reinventa então tento estar aberta para tudo.
Como você vê o momento atual da sociedade, com coisas inspiradoras como o movimento dos jovens ocupando escolas em atitudes bem progressistas, uma volta do feminismo renovado, mas por outro lado uma reviravolta conservadora e careta que pode representar um grande retrocesso ?
Eu vejo o momento com naturalidade, como consequência de tudo que mudou ou evoluiu, se aparece alguém se opondo ou falando coisas oportunamente, por que são coisas de oportunidade, onde se aproveitam de situações para colocar uma idéia que não estava no horizonte.
Mas o problema é que as pessoas atualmente estão muito ingênuas, e tem uma visão distorcida da realidade, pois a questão do domínio e do controle são muito mais sutis do que pensamos, e ele está conosco o tempo todo, junto com o celular e está todo mundo entrando nessa, caindo loucamente na rede.
O momento é de se doutrinar, definir sua própria forma de ser. Você vê o cara que critica o governo, ou que age de forma violenta num protesto, mas como você é ? Como você é na sua vida, em casa, na sua relação com a sociedade ? Será que você no dia à dia não reproduz e comete esses mesmos erros ?
Se não conseguirmos mudar nossas próprias coisas e tal, nada vai mudar de fato.
E outra coisa importante, eu ví um filósofo uma vez colocando que mesmo questões importantes como qualidade de vida e distribuição de renda, não vão mudar o mundo e sim se libertar e controlar os próprios afetos.
Por exemplo o Medo, é a maior forma de controle que existe, ou a Esperança de ter um futuro bom, acreditar que o mundo vai melhorar, isso tudo alimenta a psique das pessoas.
Alimenta sim esse sentimento de que tudo está ruim, e uma ação como essa dos estudantes secundaristas é importante, mostra que os caras que mandam podem ser tirados e que as coisas podem funcionar sem eles.
Afinal nas ocupações os jovens se organizaram, limparam os colégios, se comunicaram com a mídia, convidaram pessoas para dar aulas e assim mostraram uma força importante. Eles podem administrar a própria escola, falar com os professores e tal.
As vezes quando tudo cai mesmo, é que as pessoas assumem sua própria responsabilidade, acaba sendo uma esperança, de você poder não ser ridículo, e ter que reaprender a negociar com as pessoas, ter bom senso, entrar em acordo e tal, já que no fundo o mais sutil é mesmo o mais complicado, saber lidar com tudo isso que tenho internamente é que vai ser a diferença no futuro.
Então você está então mais otimista ?
Comigo sim. Tento aproveitar tudo isso para dar um passinho para frente e melhorar, evoluir como ser humano.
Confiram a banda ao vivo em Set/2015 ao vivo no Metrópolis da TV Cultura